quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Baixos salários, condições insalubres: a vida do trabalhador que colhe frutas no Nordeste

Oxfam divulgou nesta quinta-feira (10) o relatório 'Frutas doces, vidas amargas', sobre as condições de trabalho da colheita de frutas em 11 municípios de Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco e Bahia.

Produção de uva no Vale do São Francisco; Brasil é hoje o terceiro maior exportador de frutas do mundo, mas trabalhadores que atuam na colheita estão entre os mais pobres do país — Foto: Reprodução/TV Grande Rio

O Brasil é hoje o terceiro maior exportador de frutas do mundo e vem caminhando a passos largos para se tornar o maior exportador nesta cadeia produtiva, que gera quase R$ 40 bilhões por ano. A Agrícola Famosa, por exemplo, é a maior empresa exportadora de melões do mundo e tem fazendas no Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Piauí. As corporações que comercializam as frutas tropicais geraram, nos últimos anos, 800 milhões de dólares anuais, o que representa cerca de R$ 350 bilhões.

Os números são macro quando as protagonistas são as corporações. Na outra ponta do desenvolvimentismo estão as pessoas que trabalham e ajudam muito a movimentar tanto capital. Quando se fala sobre elas, no entanto, tais números diminuem bastante: trabalhadores e trabalhadoras safristas que atuam nas cadeias de melão, uva e manga no Rio Grande do Norte e no perímetro irrigado do Vale do São Francisco (Petrolina/Juazeiro) estão entre os 20% mais pobres da população brasileira.

Em 2017, a produção de manga, melão e uva foi responsável pela criação de cerca 88 mil postos de trabalho. No entanto, cerca de 45% desses postos não duraram mais que seis meses no ano: são os chamados safristas, contratados por períodos que podem variar entre 30 dias, três e até seis meses.

Estas são conclusões do novo relatório da Oxfam Brasil, lançado nesta quinta-feira (10) com o título “Frutas doces, vidas amargas”. Ele é resultado de uma análise feita sobre 57 entrevistas qualitativas em 11 municípios brasileiros que se tornaram pólos da fruticultura no Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco e Bahia.

O documento não é um panfleto antidesenvolvimentista, tampouco vilaniza as empresas em questão. Mas fornece a lupa necessária para se perceber melhor o papel delas no progresso do país e dá informações (e exemplos) que podem ajudar a melhorar a situação. Afinal, o atual governo federal tem dito que está nas mãos delas a responsabilidade pelo desenvolvimento do país.

“A renda mensal média em um ano para quem trabalhou no melão, manga e uva como safrista por seis meses seria de R$ 687,88, R$ 593,50 e R$ 590,96 respectivamente. De acordo com a Pnad (IBGE), isto os coloca entre os 20% mais pobres do Brasil”, diz o relatório.

Mangas do Vale do São Francisco — Foto: Reprodução/TV Grande Rio

Conversei, por telefone, com Gustavo Ferroni, o autor do estudo. Ele conta que a equipe teve dificuldade para fazer as entrevistas, já que os trabalhadores, mesmo ganhando tão pouco e vivendo tão mal, têm medo de que as coisas ainda possam piorar. Ferroni afirma que, durante seu trabalho no campo, assustou-se, muitas vezes, com o nível de vulnerabilidade daquelas pessoas.

“Vi pessoas passando fome, uma situação que a gente esperava que tivesse sido superada, sobretudo em alguns setores do país. Sabe-se que há cadeias muito complicadas, com alto grau de informalidade, mas a cadeia da fruta não é. E quando a gente chega e ouve do trabalhador que ele não pode comprar remédio porque não sobra dinheiro para comprar comida para o filho, isto assusta. Não dá para discutirmos só o trabalho análogo à escravidão porque tem uma condição de indignidade muito alta superando isto”, disse-me ele.

Ocorre que a produção de frutas hoje, no Nordeste, está entre as camadas mais avançadas do agronegócio brasileiro. Diante do quadro que viu, Gustavo Ferroni se pergunta: “Se a situação desses trabalhadores está assim, numa das camadas mais avançadas do agronegócio, como que o agronegócio pode ser considerado uma saída para o desenvolvimento do país? Tem que repensar isto”.

É preciso cobrar, também, um envolvimento maior por parte dos supermercados nesta cadeia. Em pelo menos três grandes redes de supermercados, segundo o estudo da Oxfam, estão sendo feitos alguns esforços para rastrear, com um QR Code, as frutas que vendem. É o máximo de transparência que conseguem, e isto é dividido com os cidadãos que compram os produtos. A iniciativa é válida, mas falta mais transparência, já que o QR Code não pode dar conta de mostrar as condições em que vivem as pessoas que trabalham no setor.

Outro paradoxo visível, entre o alardeado desenvolvimento e a riqueza que o setor de agronegócio é capaz de trazer ao país, vê-se no momento em que o estudo confere o Índice de Desenvolvimento Humano municipal dos principais municípios produtores de melão, manga e uva no vale do São Francisco e no Rio Grande do Norte. A maioria está abaixo da média.

A questão dos agrotóxicos também é pontuada no relatório da Oxfam. Os pesquisadores entrevistaram um trabalhador que, ao término do seu serviço – aspergir o produto nas plantações de uma grande empresa que cultiva mamão no Rio Grande do Norte – fica com as roupas encharcadas com a substância. Não há banheiros nem água corrente para que ele lave as mãos. Muitos reclamam, mas o que ouvem de volta é que “pior será se você ficar sem emprego”, o que para muitos é verdade.

“A grande maioria dos trabalhadores das regiões de fruticultura é egresso da agricultura familiar. Esta pequena agricultura local, que, sim, era pouco capacitada e tinha poucos recursos, foi sendo alienada do processo de desenvolvimento. O modelo escolhido foi o de modernização do campo, investimento em quem tem mais capacidade para aumentar a produção e, assim, ter vantagem competitiva. A grande maioria desses pequenos acabou se empregando numa grande fruticultura. Conforme este tipo de coisa vai acontecendo há um desequilíbrio de forças cada vez maior e as pessoas vão ficando cada vez mais vulneráveis e tendem a se sujeitar a situações cada vez piores”, disse Gustavo Ferroni.

A ideia da Oxfam, ao divulgar o relatório, é trazer este assunto à tona. O nome das empresas não é revelado para não impactar a vida dos trabalhadores. Pergunto a Gustavo o que nós, cidadãos comuns, na ponta desta cadeia, podemos fazer para melhorar as coisas na hora da compra nos supermercados ou nas feiras-livres. Boicote funciona?

“A discussão da sustentabilidade no Brasil ficou muito restrita à parte de relatos, com relatórios de sustentabilidade. Na Oxfam se cobra, primeiro, que as empresas têm que se posicionar publicamente sobre os temas; que as políticas corporativas têm que ser públicas. É preciso ter uma política de direitos humanos, outra sobre terra na cadeia de suprimentos. Vemos que isto está pouco desenvolvido aqui no Brasil. Mas não defendemos o boicote. O cidadão, porém, pode se manifestar. Hoje as redes sociais ajudam nisso e as relações com os supermercados estão cada vez mais estreitas”, sugere Gustavo.

No final do relatório, a Oxfam tem o cuidado de fazer sugestões aos atores envolvidos na questão. Produtores rurais, supermercados e governo têm, assim, em mãos, um estudo que pode ajudá-los a tirar o Brasil de uma lista que não nos dá motivo algum de orgulho: ele está incluído entre os dez piores países em relação aos direitos dos trabalhadores, segundo a Oxfam. A isto se junta um nível de desigualdade que vem subindo consecutivamente desde 2015.

Fonte: G1

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